Vizinhos de obras costumam reclamar. Queixam-se do barulho, da poeira, dos caminhões que largam concreto pelo asfalto e transformam o trânsito num caos.

Mas, aos 90 anos, Dona Faninha é uma vizinha diferente. Diariamente, ela vai à varanda do prédio onde reside, no Condomínio Praia da Barra, e ali cumpre um ritual de simpatia e gentileza. Tão logo o sol desponta, ela sorri, acena e cumprimenta os operários que estão iniciando o dia de trabalho nas obras do Wave By Yoo, empreendimento da RJZ Cyrella, na Av. Lúcio Costa, no Posto 5 da Barra. 

Devido a distância, havia dificuldade de eles entenderem o que Dona Faninha falava.  Foi quando ela resolveu fazer uma placa, desejando “BOM DIA!” Em troca, ganhou acenos, beijos e até aplausos dos colaboradores da Machado Vieira, que atuavam nos dois blocos situados ali em frente. Mas o ritual não parava por aí. Logo depois do meio-dia, ela retornava à varanda para a segunda sessão de sorrisos e acenos, mostrando o verso da placa: “BOA TARDE!” 

Representando seus colegas da MV, a técnica Nara Ribeiro entrega a orquídea à Dona Faninha – Fotos MV/ Rafael Miller 

O gesto foi tão cativante que os trabalhadores contavam sobre Dona Faninha para os companheiros, espalhando o comentário em diversas obras da Machado Vieira. 

Gentileza gera gentileza. Representando a diretoria e funcionários da MV, a técnica de segurança do trabalho, Nara Ribeiro, foi até o apartamento onde reside a amiga dos operários para retribuir um pouco desse carinho, entregando-lhe uma orquídea.

Na flor de quase um centenário, a professora aposentada Francisca Schetino Gomberg, esbanja alegria e bom humor. Foi assim, de braços abertos, que recebeu a equipe de MV e Você para contar um pouco de sua vida: 

 – Senta aí, cara. O que vai rolar? – Quis saber, curiosa.

A filha Dóris ajuda a professora a recordar tempos de poesias e crônicas inspiradas

 

Paixão pelas crianças

 Não se iluda com o tom coloquial. Dona Francisca é brincalhona, mas fala um português correto, sem arestas, aprendido desde os 12 anos, quando ingressou no Instituto de Educação. Aos 17 formou-se professora primária, lecionando por mais de 35 anos em diversas escolas públicas dos subúrbios cariocas. Os estudantes sempre foram a sua paixão, como ela externa em uma de suas poesias:

 “Obrigada, Senhor, por tudo que me deste/ Momentos de alegria, sonhos e esperança/ Mas o maior dos bens que tive/ Foi estar sempre cercada de crianças…”  

Eram tempos em que professores e alunos se respeitavam. Ou mais, até: se amavam.

O artigo que rendeu à Dona Faninha homenagem da Polícia Militar em praça pública

 Além de falar muito bem, Dona Faninha tem uma sensibilidade machadiana. Quando residia no Méier, ficou chocada quando soube que a Prefeitura ameaçava derrubar diversas mangueiras para construir uma praça, a Agripino Grieco. 

A proprietária do terreno, Dona Maria Lemme, lutou até onde pode, impedindo a desapropriação e, consequentemente, a devastação. Mas quando morreu, os riscos voltaram em dose dupla. A praça foi construída, mas graças à luta dos moradores, as árvores foram preservadas. Inspirada no movimento, a professora escreveu um artigo: “Às mangueiras da Praça do Méier”, publicado num jornal local. Comoveu a comunidade. Ganhou diploma da Polícia Militar e foi homenageada em praça pública, juntamente com um pipoqueiro, amigo do bairro.

– Mas me deixaram em pé por mais de duas horas. O pipoqueiro também. Mas ele estava acostumado, né? 

Fã de Zeca Pagodinho e muito inspirada, a professora tem sempre uma boa história para contar

 

A árvore da vida

Anos atrás, já residindo na Barra, Dona Faninha teve um sentimento parecido, quando derrubaram as árvores no terreno situado ao lado de seu condomínio. Lembrou-se das mangueiras do Méier, que tiveram mais sorte. Ficou triste com a derrubada, mas os filhos a convenceram de que viria uma compensação, com a chegada dos novos moradores dos prédios que estão sendo construídos. Encolheu os ombros, recorrendo à filosofia de um de seus ídolos, Zeca Pagodinho:

– “Aceita que dói menos” – afirma, consolada pela filha Dóris.

Felizmente, tudo mudou quando chegaram os operários para erguer os blocos de apartamentos do Wave By Yoo. Dona Faninha recuperou o bom-astral, revivendo a alegria dos tempos de menina, quando tagarelava e cumprimentava todo mundo, até os desconhecidos:

– Sempre fui uma “cumprimentante” – brinca, revelando que aprendeu a ser assim com os pais, o italiano Biagio Schettino e a dona de casa Rosalina. Os dois também eram falantes.

Apesar da idade, a memória ainda está vivíssima, embora surjam alguns lapsos de vez em quando, atrapalhando a narrativa. Revela um segredo: De todas as árvores que passaram em sua vida, não consegue esquecer de uma:

– Ela ficava bem aqui, em frente, no terreno ao lado. Havia uma feira-livre, aonde eu ia sempre com o meu marido (Maurício Gomberg). Na volta, parávamos na sombra para comer pastéis e tomar caldo de cana. E ficávamos namorando… Puxa, como era bom!

Os operários se foram, mas as placas permanecem para cumprimentar os moradores dos novos prédios

 

Veja também:

A saga do quilombola Iones

Os três sonhos de Francisco